quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Pesquisador consegue o impossível: misturar água e óleo


"Água e óleo não podem se misturar por natureza"
(Igreja Batista da Graça de Pontotoc, Mississipi, EUA)

"Como diz o ditado popular, dois bicudos não se beijam.
Uma das principais formas de interação entre moléculas
("beijos") ocorre por meio de forças eletrostáticas. A água, H2O,
apresenta em sua estrutura um pólo negativo, localizado no
oxigênio, e pólos positivos nos hidrogênios. Devido a essa
característica polar, a água tende, na maioria das vezes, a
interagir com moléculas que apresentem pólos definidos em sua estrutura,
o que não é o caso do óleo (característica apolar), constituído
essencialmente de átomos de carbono e hidrogênio,
que não possui pólos definidos em sua estrutura.
Portanto água e óleo não se misturam."
(Marcelo Brito Carneiro Leço, pesquisador e professor
do Departamento de Química da Universidade
Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Jornal do Commercio de Recife, 11/4/1999.)


Água e óleo não se misturam! Quem duvidaria de uma afirmação como essa, atestada, como se vê, por empresários, políticos, sociólogos, religiosos e cientistas? No entanto, foi esse o resultado - uma mistura de água e óleo - de uma pesquisa realizada pelo físico-químico Ric Pashley, da Universidade Nacional da Austrália, conforme noticiou em 19 de fevereiro de 2003 a New Scientist, revista norte-americana de divulgação científica.


A importância de misturar água e óleo


Para conseguir a façanha, Pashley colocou água e óleo num recipiente e o submeteu a sucessivos congelamentos e descongelamentos, processo pelo qual pode-se retirar gás de um líquido. Quando quase todo o gás dissolvido na água foi extraído, aconteceu o inacreditável: "A mistura ocorreu espontaneamente, formando uma emulsão embaçada. Eu fiquei tão surpreso como qualquer pessoa", declarou Pashley. Como costuma acontecer nessas ocasiões, para não perder a primazia do feito, ele só divulgou o resultado da pesquisa depois de sua publicação numa revista científica de renome, o Journal of Physical Chemistry B, vol 107, p 1714.


Ainda é preciso que outros pesquisadores repitam a experiência e confirmem o seu resultado, ou seja, que essa mistura efetivamente ocorre, nessas condições. Uma vez confirmada, no entanto, as conseqüências dessa pesquisa são imprevisíveis - não pelo ineditismo, mas por suas implicações científicas.



Qual a importância disso para a ciência?


A impossibilidade da mistura da água e óleo tem justificativas solidamente assentadas em princípios físicos e químicos. Se a mistura ocorre, restam aos físicos e químicos duas incômodas opções: a primeira consiste em buscar uma nova explicação que justifique a mistura e o possível erro das explicações anteriores; a segunda opção é encarar a possibilidade de haver incorreção em algum dos princípios físicos que garantem ser essa mistura impossível. A dramaticidade de qualquer dessas duas alternativas está na dificuldade de se imaginar o que pode haver de errado. Mal comparando, a confirmar-se a pesquisa de Pashley, os cientistas vão se sentir como pais que descobrem uma conduta reprovável num filho exemplar e perguntam-se perplexos: "onde foi que erramos?"


Para entender a dificuldade de encontrar esse "onde foi que erramos" vamos recorrer a uma síntese de duas explicações atuais para a impossibilidade da mistura de água e óleo. A primeira aparece numa das citações que encabeçam o texto, do professor Marcelo Brito Carneiro Leço. É a explicação mais comum, preferida dos físicos e químicos: a impossibilidade da mistura decorre da maior afinidade das moléculas da água entre si, resultante da polarização elétrica dessas moléculas - o lado do oxigênio é negativo e o lado dos hidrogênios é positivo -, em contraposição ao caráter neutro (apolar) das moléculas de óleo. Isso faz com que as moléculas de água se atraiam e se agrupem, o que "marginaliza" as moléculas de óleo.


A segunda explicação baseia-se em conceitos de termodinâmica e física estatística: água e óleo não se misturam porque a entropia do sistema água e óleo não misturados é máxima. Ou seja, a desordem desse sistema prevalece por ser maior do que a desordem do sistema água e óleo misturados. Explicando melhor: de acordo com a segunda lei da termodinâmica, todo fenômeno natural espontâneo tende a atingir um estado estatisticamente mais provável -o estado de entropia máxima. É por isso que o calor sempre passa do corpo mais quente para o mais frio, assim como o perfume de um frasco aberto sempre evapora. O contrário não ocorre de forma espontânea porque são estados estatisticamente menos prováveis, nos quais a entropia diminui em vez de aumentar. Assim, a mistura de água e óleo seria tão improvável como, espontaneamente, o calor passar do corpo mais frio para o mais quente, ou o perfume difundido no ar condensar-se e voltar ao interior do frasco.


São explicações de bases conceituais muito sólidas. Para a física, a polarização elétrica das moléculas da água é uma certeza quase tão firme quanto o princípio da atração e repulsão de cargas elétricas. E ambas explicam a forma como se agrupam as moléculas de água e as propriedades resultantes, entre as quais os altos pontos de ebulição e fusão da água e o aumento de volume ao congelar-se (o que contraria o comportamento da maioria das substâncias). De resto, a segunda lei da termodinâmica é um dos pilares da física e de toda ciência moderna.


Imaginar que misturar água e óleo abale essas estruturas conceituais pode parecer absurdo, mas não é. Foram experimentos igualmente simples que provocaram a revolução da física no início do século XX e deram origem à física quântica.



O segredo da mistura de água e óleo


A idéia de Pashley, de retirar gases dissolvidos na água para tornar possível a sua mistura com o óleo, não foi palpite ou revelação. Há muito esse pesquisador estuda o comportamento de substâncias hidrofóbicas, ou seja, que não se dissolvem na água, como o óleo. Uma das propriedades dessas substâncias, descobertas nesses estudos, é a interação hidrofóbica, fenômeno essencial na formação de inúmeras proteínas e enzimas. E o óleo é justamente a substância em que a interação hidrofóbica é mais notável, pois ocorre a distâncias relativamente grandes.


Na busca de indicações para descrever e explicar essa interação no óleo, Pashley passou a examinar amostras de superfícies retiradas de misturas, ou melhor, de não-misturas, de água e óleo. Nessas superfícies ele descobriu inúmeros pontos semelhantes a bolhas microscópicas que não eram água nem óleo. Sabendo que sempre há certa quantidade de gases dissolvidos na água exposta ao ar, Pashley supôs que esses pontos deveriam ser bolhas microscópicas desses gases, expulsos da água pelo óleo. Imaginou que, assim como a interação elétrica entre as moléculas polarizadas da água "marginaliza" as moléculas de óleo, obrigando-as a agrupar-se na forma de gotas esféricas espalhadas na água, a interação hidrofóbica entre as moléculas do óleo deveria "marginalizar" as moléculas dos gases dissolvidos na água que, como as do óleo, seriam forçadas a se agruparem nessas microbolhas. Um jogo de cão, gato e rato.


Foi para testar essa hipótese e verificar como se comportariam a água e o óleo sem os gases dissolvidos que Pashley os extraiu e, para sua surpresa, obteve a improvável mistura. Curiosamente, essa mistura mostrou-se bastante estável - não mais se desfez, mesmo quando Pashley reintroduziu os gases retirados. No jogo do cão, gato e rato, retirado o rato, cão e gato se uniriam e passariam a viver em eterna harmonia, mesmo com a volta do rato...



O que fazer com essa descoberta?


A reação inicial dos cientistas procurados pela New Scientist para opinar sobre essa pesquisa foi de cautela e incredulidade. Embora Pashley seja um pesquisador de prestígio na área, ainda se espera que outros refaçam seu experimento e confirmem o resultado. Ao que parece, a esperança de todos - ou quase todos - é de que tudo tenha sido um alarme falso, um equívoco, pois são enormes os desafios conceituais propostos pela confirmação desse resultado.


Do ponto de vista tecnológico, porém, essa descoberta apresenta novas e promissoras possibilidades. A mistura, ou melhor, a emulsão de água e óleo, sempre foi possível com o auxílio de uma substância intermediária, chamada de tensoativa. As substâncias tensoativas têm uma estrutura molecular que lhes dá afinidade tanto com a água quanto com o óleo. O exemplo mais comum é a gema do ovo, substância tensoativa que permite uma apreciada emulsão de água e óleo: a maionese. Se a técnica resultante dessa pesquisa for confirmada, será possível misturar água e óleo sem o auxílio de substâncias tensoativas; ou seja, será possível fazer maionese sem gema de ovos. É provável que essa não seja uma boa aplicação, mas certamente há outras. Muitos medicamentos, cosméticos, alimentos e outros produtos químicos baseados na emulsão de água e óleo se beneficiarão com essa nova técnica.


Agora novas pesquisas estão sendo realizadas em laboratórios de todo mundo. Se o resultado se confirmar,certamente os cientistas saberão enfrentar mais essa armadilha da natureza. E espera-se que os políticos, talvez os mais entusiasmados apreciadores desse bordão, encontrem um substituto a altura...



Alberto Gaspar(Doutor em Educação pela USP, Prof. de Física da Unesp-Guaratinguetá e autor da Ática)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradeço por mais esta postagem